Acesso Livre
África do Sul: Crise Económica e Corrupção Agudizam Divisões Internas no ANC
O combate de Ramaphosa à corrupção ameaça fracturar o ANC
No meio de uma crise económica, com uma previsão de contracção de 7,2% este ano e novos milhões de desempregados em perspectiva, e uma pandemia de Covid 19, Cyril Ramaphosa, presidente sul-africano e líder do Congresso Nacional Africano (ANC, no acrónimo em inglês) tem ainda em mãos rivalidades intra-partidárias e casos de corrupção.
Arriscando a estabilidade do partido, Ramaphosa publicou uma carta aberta a 23 de Agosto apelando à restauração dos valores e da integridade do partido, ameaçados pela corrupção. Nessa carta, reclamando uma legitimidade conferida pelo 54º Congresso do ANC, de 2017, Ramaphosa admitiu a existência de corrupção entre membros do partido, sobretudo relacionada com desvio de fundos destinados ao combate à pandemia. E defendeu a implementação de resoluções tomadas no 54º Congresso, mas nunca colocadas em prática, como o afastamento voluntário de cargos por militantes acusados de crimes de corrupção enquanto durassem os processos ou a presença de suspeitos de corrupção na Comissão de Integridade (CI) do partido para explicações e eventual suspensão de funções, entre outras.
Poucos dias antes, o Comité Executivo (National Executive Committee, ou NEC) do ANC já tinha decidido algo semelhante. O efeito imediato seria, conforme os casos, o afastamento de vários militantes, como Bongani Bongo (deputado), Zandile Gumede (deputada) ou Andile Lungisa (conselheiro municipal), e a pressão sobre Ace Magashule (secretário-geral do ANC), Khusela Diko (porta-voz presidencial) ou Bandile Masuku (“ministro” da Saúde da província de Gauteng) para se sujeitarem ao crivo ético da CI. Alguns dos visados questionaram a obrigação de afastamento, alegando inconstitucionalidade da norma partidária que o determina.
A postura deontológica de Ramaphosa, porém, não escapou a críticas. Tony Yengeni, membro do Comité Nacional do Trabalho e ex-coordenador parlamentar do ANC, exigiu a sua demissão e Jacob Zuma, ex-Presidente do país e ex-líder do partido, acusou-o de fazer uma manobra de diversão face a alegações de que teria recebido doações de capitalistas brancos para apoio à sua ascenção à presidência do partido em 2017, assim ferindo a tradição histórica do ANC. Numa reunião do NEC, segundo relatos, Ramaphosa terá dito que estaria pronto a comparecer na CI para esclarecer essa questão. Nas redes sociais, o Presidente foi criticado por querer transferir a responsabilidade do combate à corrupção para quem não tem o poder de o travar, numa alusão ao seu apelo à mobilização da sociedade contra aquele flagelo. Foi ainda acusado de contradição por fazer tal apelo poucos dias depois de Zandile Gumede, ex-presidente da Câmara de eThekwini, acusada de corrupção, ter sido empossada como deputada da província de KwaZulu-Natal.
E ainda existe Ace Magashule, um dos rostos da oposição interna, tido como chefe de gang e sujeito a investigações da National Prosecuting Authority (NPA, equivalente ao Ministério Público). Além de já ter dado a entender que não abandona voluntariamente o cargo, Magashule foi preterido numa recente conferência de imprensa do ANC, que habitualmente conduz, por Ramaphosa, precisamente aquela em que o líder leu a carta aberta. Mas aqui reina a surpresa, pois Magashule terá admitido que foi consultado por Ramaphosa antes da divulgação da carta. O analista Jakkie Cilliers lembra que a Constituição do ANC só permite o afastamento de Magashule no próximo congresso electivo, em 2022. Mas a situação será diferente se ele for formalmente acusado de “crime sério” pelas autoridades. Nesse caso, face à nova medida, deve afastar-se dos cargos. Todavia, pode não o fazer e angariar apoios no seio da NEC para manter a sua posição.
À ofensiva de Ramaphosa contra a corrupção não será alheia a consciência que tem dos danos que a falta de transparência relacionada com fundos para combater a pandemia provoca na imagem do ANC. Nem a percepção que tem da degradação da sua própria imagem pública como Presidente. Ramaphosa sabe, porém, que a oposição interna a estas medidas dificultará a sua implementação eficaz e que mesmo no principal órgão decisório do partido há posições divergentes sobre a atitude a tomar face a quem não siga as novas directrizes. A isto acrescem rumores, como o da eventual remodelação governamental ou do próprio afastamento de Ramaphosa da liderança do partido. Convertido em realidade, o primeiro não passaria de um movimento estratégico. Já o último, significaria uma crise, com a ascenção à chefia do partido de David Mabuza, a quem a CI não terá ilibado de responsabilidades relativas ao período em que governou a província de Mpumalanga.
No contexto actual, com a imagem de Ramaphosa e do ANC em perda e eleições locais no próximo ano (e provinciais e gerais em 2024), é determinante para o partido ultrapassar o impasse. As eleições locais serão um barómetro fundamental, especialmente na província de Gauteng, o coração económico do país e a que pertencem Pretória e Joanesburgo, por exemplo. Já em 2019 o ANC perdeu ali votos. “Mesmo assim, derrubar o ANC em Gauteng exigirá um notável desempenho político pelo novo partido Action SA, criado pelo ex-presidente da Câmara de Joanesburgo, Herman Mashaba”, refere Jakkie Cilliers. Para conquistar a província em 2024, Mashaba terá que dominar Tshwane, Ekurhuleni e Joanesburgo em 2021. O analista admite que uma coligação entre o Action SA e a Aliança Democrática, de John Steenhuisen, o principal partido da oposição, pode aspirar a ser governo na província em 2024.
Jakkie Cilliers considerava já em 2017 que se o ANC perdesse Gauteng, passaria a ser essencialmente um partido rural, dependente de parcerias com líderes locais. Para o ANC, o risco eleitoral existe, mas as eleições são um dos três cenários possíveis para ultrapassar o impasse no ANC, considera o analista. Outro cenário será uma divisão do próprio ANC, através de um “divórcio litigioso”. E nesse caso, Cilliers acredita que a base social de apoio acompanhará sobretudo Ramaphosa, que o analista considera ser de longe o político mais popular do país. Outro ainda será uma recuperação da ascendência de Ramaphosa no ANC, favorecendo eleitoralmente o partido, e que só parece possível com a remoção de Magashule, segundo Jakkie Cilliers. Mas este afastamento é tudo menos certo.
O analista, porém, considera que o ANC perderá a sua maioria a nível nacional, em Gauteng e mesmo noutras províncias, como o Cabo Setentrional, KwaZulu-Natal e o Estado Livre. Admite igualmente que mesmo num cenário de cisão do ANC, Ramaphosa arregimentará forças para formar um Governo, ainda que em coligação, quer no plano nacional, quer no provincial.
Naquela que é a principal disputa pelo poder no ANC desde os anos 90 do século passado, combater a corrupção, mas também ultrapassar o impasse político, são requisitos essenciais para a população sul-africana recuperar a confiança nos seus dirigentes, o país enfrentar a crise económica que atravessa e conservar a estabilidade social que ainda mantém. (JA)
Nota: O autor não escreve segundo as regras do novo acordo ortográfico