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Mercado único africano nas mãos de Ramaphosa

Mercado único africano nas mãos de Ramaphosa

Caberá à África do Sul, durante a sua presidência da União Africana, implementar a zona de comércio livre no continente. São 54 países, com mais de mil milhões de consumidores, nos quais se pretende abolir os direitos aduaneiros sobre 90 por cento dos produtos.


Este ano, a África do Sul (RSA) detém a presidência da União Africana (UA), com dois grandes temas na agenda: a implementação da Zona de Comércio Livre Continental Africana (ZCLCA, ou AFCFTA, em inglês), prevista para 1 de Julho próximo, e a segurança, que envolve a pacificação de conflitos militares regionais do continente. Durante um ano, o Presidente da RSA, Cyril Ramaphosa, secundado pelos chefes de Estado da República Democrática do Congo, Felix Tshisekedi, Mali, Ibrahim Boubacar Keïta, e Quénia, Uhuru Kenyatta, nas vice-presidências, será o rosto da organização, até ceder o cargo rotativo a Felix Tshisekedi, em 2021. Com a presidência da UA, que acumula este ano com um dos lugares não permanentes no Conselho de Segurança das Nações Unidas, uma posição na troika que apoia o processo das Nações Unidas de resolução do conflito político do Sahara Ocidental e, desde a cimeira de 9 e 10 de Fevereiro último, em Adis Abeba, na Etiópia, a Secretaria Geral da ZCLCA, a RSA (primeira presidente da UA, entre Julho de 2002 e Julho de 2003, com Thabo Mbeki), será especialmente influente na política africana e global. Um poder que nem todos os seus parceiros africanos vêem com bons olhos.

E que será testado numa agenda difícil de gerir. Além de assegurar a implementação da ZCLCA, os trabalhos de Hércules da UA contemplam a preparação de uma nova comissão executiva da organização para 2021, a negociação sobre o co-financiamento das missões de manutenção de paz chefiadas pela UA por parte da União Europeia, a gestão de inúmeros processos eleitorais em cerca de duas dezenas de Estados, alguns dos quais ameaçados por conflitos militares, políticos e étnicos latentes ou em curso (Etiópia, Costa do Marfim, Guiné, Burkina Faso, Camarões e Somália, por exemplo), a gestão do processo de paz e do cessar fogo no Sudão do Sul e o apoio a uma transição política pacífica no Sudão, garantindo um acordo entre os militares e os principais responsáveis civis. Em Adis Abeba, Cyril Ramaphosa preferiu sintetizar a sua missão orientando-a para o crescimento de África no contexto da Agenda 2063 (um quadro de desenvolvimento estratégico a longo prazo assente numa visão pan-africana próspera, pacífica e integrada para o continente). E sublinhou a necessidade de aprofundar a unidade africana, prosseguir o crescimento económico e o desenvolvimento sustentável, garantir a boa governação e a paz, apoiar a integração, a industrialização, o comércio e o investimento, desenvolver uma estratégia de revolução industrial, promover a inclusão económica e financeira das mulheres e tornar África um parceiro influente no plano internacional.
 

Um novo mercado único a partir deste ano

Sem desprezo pela pacificação dos conflitos, determinante para a segurança das populações e o desenvolvimento dos Estados, mas com focos geograficamente distintos, a comunidade internacional estará especialmente atenta ao arranque operacional da ZCLCA, que abrange e visa integrar economicamente toda a África. Um “salto em frente” no “velho sonho pan-africanista”, como lhe chamava a Euronews em 2019. Acordada e aberta à subscrição dos Estados em Maio de 2018, em vigor desde 30 de Maio de 2019 e com o lançamento da fase operacional em 7 de Julho desse ano, a ZCLCA será a maior zona de comércio livre desde a Organização Mundial do Comércio, criada em 1995, considerando a actual população africana, estimada em 1,2 mil milhões de pessoas (com um PIB combinado de 2,5 biliões de dólares, ou 2 biliões de euros, segundo o FMI) e com perspectiva de atingir 2,5 mil milhões em 2050. Segundo a UA, no âmbito da qual nasceu, com 54 dos seus 55 Estados (apenas a Eritreia não assinou), a ZCLCA visa criar um mercado único para bens e serviços em África, com perspectivas de livre circulação de pessoas e capitais e até, segundo o FMI, de uma união monetária, para expandir o comércio intra-continental e apoiar a transformação de África. O acordo, ainda não ratificado por todos (apenas cerca de metade o fizeram), prevê reduzir progressivamente e eventualmente eliminar os direitos aduaneiros e os constrangimentos não alfandegários sobre os bens. A meta é abolir os direitos aduaneiros em 90 por cento dos produtos em todo o continente. Os 10 por cento remanescentes são produtos sensíveis, excluídos da zona de livre comércio e sobre os quais muitos países querem estabelecer políticas próprias de industrialização. As empresas locais temem que com a zona livre possa ocorrer dumping de produtos vindos da África se existirem fragilidades na implementação do acordo. No prazo de 10 anos, porém, mais 7 por cento dos produtos, agora considerados sensíveis, devem ser liberalizados.

Entretanto, a Comissão Económica das Nações Unidas para a África estima que o acordo faça crescer o comércio intra-africano em 55% até 2022. E a UA estima um aumento de quase 100% na próxima década. Neste momento, o comércio intra-continental em África representa entre 15% e 18% do total, segundo a UA, quando na Ásia é de 33% e na Europa é de 60%, segundo as Nações Unidas, e no âmbito do Acordo de Livre Comércio da América do Norte, ou USMCA, em inglês (entre Estados Unidos, Canadá e México), é de 50%, segundo um estudo recente da Universidade de Oxford e da firma Baker Mackenzie («AFCFTA's US$ 3 trillion Opportunity: Weighing Existing Barriers against Potential Economic Gains»). O estudo confirma que os países africanos comercializam mais com o exterior do que entre si. Com a Europa fazem cerca de 35% do comércio e com a Ásia 31%. “Algumas economias, como o Uganda e o Zimbabwe, contrariam a tendência geral, comercializando mais com os vizinhos do que outras nações africanas, porém, são economias menores em contraste com as do Egipto, Nigéria e RSA, por exemplo, que em conjunto representam mais de metade do PIB do continente”, refere o documento.


PIB pode crescer 3 biliões de dólares

Segundo o estudo da Baker Mackenzie e da Universidade de Oxford, depois de implementada, a ZCLCA libertará um potencial de crescimento do PIB na zona abrangida estimado em 3 biliões de dólares. E identifica a RSA, o Gana, a Costa do Marfim, o Quénia e Marrocos como os principais beneficiários. “O relatório revela que os países com boa integração comercial com os seus vizinhos e que têm economias abertas são os que mais poderão beneficiar economicamente de taxas comerciais reduzidas”, explica a Baker Mackenzie.

Numa análise à economia africana, o documento refere que mais de ¾ das exportações africanas para o resto do mundo são essencialmente recursos naturais, como matérias-primas. Observando as importações de fora do continente, o estudo nota que os produtos transformados, a maquinaria industrial e os equipamentos de transporte constituem mais de metade das necessidades africanas. Outro dado curioso mencionado por um dos analistas da Baker Mackenzie é o de que os produtos transformados (que representam 10% do PIB em África) exportados entre países africanos são principalmente veículos com motor e maquinaria industrial e representam 1/3 do fluxo comercial intra-continental. Todavia, uma parte significativa destas exportações intra-continentais de produtos transformados é uma re-exportação de produtos originalmente importados do resto do mundo. Este desalinhamento interno entre a produção africana e as necessidades do continente pode ser corrigido pela ZCLCA, mas implicará uma diversificação da produção para ir ao encontro das necessidades dos parceiros.

Outros obstáculos à liberalização do comércio em África, que desperta o apetite das multinacionais, são as débeis infra-estruturas, como os transportes, na fraca logística comercial, na burocracia onerosa, nos mercados financeiros voláteis, nos conflitos regionais e numa corrupção quase endémica. Em conjunto, podem constituir um risco maior para a expansão do comércio africano do que as taxas aduaneiras.
Na opinião da Baker Mackenzie, a ZCLCA é um passo positivo para África e o comércio global em geral e se tiver êxito, apesar dos enormes desafios que enfrenta, pode converter-se numa das novas zonas de comércio global mais dinâmicas na próxima década. O FMI, por seu lado, lembra que as reduções tarifárias devem ser acompanhadas por políticas de diminuição de estrangulamentos não tarifários, que abordem “os custos de ajustamento da integração comercial” (fomentar a produção agrícola em economias menos diversificadas, usar as receitas fiscais para compensar eventuais perdas e recorrer a “programas sociais e de formação direcionados para facilitar a mobilidade dos trabalhadores entre indústrias para mitigar os efeitos adversos na distribuição de rendimentos”.

Neste contexto, uma palavra sobre parceiros. Se é certo que a Europa tem sido o principal parceiro comercial africano (segundo a UA, 36% do comércio foi feito com a União Europeia em 2018, a maior fonte de investimento directo estrangeiro no continente em 2017 foi a UE – 261 mil milhões de euros -, a maioria das remessas financeiras para África em 2015 – 36% - partiram da UE e o principal apoio assistencial ao continente tem sido da UE), não o é menos que a penetração chinesa e russa no continente tem crescido nos últimos anos. Como o demonstram evidentes sinais políticos, militares e económicos, que deixam a Europa cada vez mais para trás.

JA

(O autor não escreve com as regras do novo acordo ortográfico)