Africa Monitor

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Circulo Eleitoral no Exterior: Rodeios e Medo da Transparência em Angola

por: José Gama*, Luanda

 

A primeira vez que se discutiu, em bloco, a inclusão da diáspora angolana no desenvolvimento político do país, após a independência nacional, aconteceu em Abril de 1990, quando Lisboa acolheu durante dois dias aquele que ficou conhecido como o “primeiro encontro de quadros angolanos no exterior”. O Governo de Angola e a UNITA, que ainda estavam desavindos, também se fizeram representar: o primeiro por uma delegação chefiada pelo Ministro das Relações Exteriores, Pedro de Castro Van-Dúnem “Loy” e a UNITA pelo secretário dos negócios estrangeiros, Tony da Costa Fernandes. Organizado por Francisco Viana, o evento contou igualmente com a presença de Dom Alexandre do Nascimento, André Franco de Sousa e Joaquim Pinto de Andrade.

No ano seguinte a este evento, foram assinados, em Lisboa, os Acordos de Paz de Bicesse, entre Governo e UNITA, sendo as principais medidas transformacionais então consagradas em Lei Constitucional (Lei 23/92) pela Assembleia do Povo em Setembro de 1992. Esta lei constitucional estabeleceu a Assembleia Nacional como “assembleia representativa de todos os angolanos”, composta por 223 Deputados (art.79, n.°1), sendo 90 eleitos por dezoito círculos provinciais, 130 eleitos a nivel nacional considerando-se o país para este efeito um círculo eleitoral único; e “para as comunidades angolanas no exterior é constituído um círculo eleitoral representado por um número de três Deputados, correspondendo dois à zona África e um o resto do mundo” (Art. 79.°, n.°2, alínea c).

Angola realizou as primeiras eleições gerais também em Setembro 1992, e, por isso, não foi possível materializar a alínea c) do artigo 79 da LC quanto à extensão do acto eleitoral à diáspora, que ficou para o futuro. No entanto, o ciclo eleitoral no país foi interrompido por força do reacender do conflito armado, que terminou em Abril de 2002. O país alcançou a paz definitiva em 2002 mas só voltou a organizar eleições legislativas em 2008, após fortes pressões da UNITA, da sociedade civil e até da comunidade internacional.

Entre 2004 e 2008, travou-se um autêntico braço de ferro sobre a preparação e organização das eleições, com a UNITA a exigir celeridade, inclusão e transparência e o Governo a procurar controlar o processo por via de nova legislação e novos órgãos por si controlados.

Assim, em 2004, através da Resolução 34/04 do Conselho de Ministros, foi constituída a CIPE- Comissão Interministerial Para o Processo Eleitoral, com a missão de organizar o registo eleitoral e de criar todas condições logísticas e materiais para a realização das eleições. Este órgão era presidido pelo Ministro da Administração do Território e incluía apenas ministros, todos eles dependentes do Presidente da República que seria, naturalmente, candidato à eleição.


Em 2005, foram aprovadas a Lei do Registo Eleitoral (Lei 3/05) e a Lei Eleitoral (Lei 6/05), que instituiu a Comissão Nacional Eleitoral, constituida maioritariamente por membros do MPLA ou próximos ao MPLA.

Enquanto isso, foi-se debatendo sobre a materialização do voto na diáspora, se estes votariam ou não nas próximas eleições. O Presidente José Eduardo dos Santos pediu pareceres aos seus colaboradores, e o Serviço de Inteligência Externa (SIE) propôs a realização em Luanda de um encontro de quadros angolanos residentes no exterior, a fim de medir a pulsação da diáspora angolana. Entre 8 a 10 de Novembro, Luanda acolheu assim cerca de 204 membros da diáspora para debater o país tendo notado que nos debates, os participantes revelavam-se críticos ao regime. As autoridades notaram que tinham uma diáspora critica ao MPLA, e desde então foi descartada a possibilidade de participarem em actos eleitorais.

No ano seguinte, isto é, em 2005, foram enviadas delegações parlamentares para auscultar diáspora e estudar a extensão de votos para as eleições, sem data marcada. Em visita a partir de Lisboa, na primeira semana de Março, o então vice-presidente da UNITA, Ernesto Joaquim Mulato denunciava haver hesitação por parte das autoridades. "Não temos visto a vontade política de realmente se fazerem as eleições no próximo ano. Ainda há (da parte das autoridades) hesitações aqui e acolá; mas já começou o debate das leis eleitorais e 2006 não pode passar". Em Julho deste ano, a sociedade civil liderada por Landu Kama, convocava uma manifestação para também exigir eleições para 2006.

Ainda em Julho de 2005, o Tribunal Supremo, a pedido do Presidente José Eduardo dos Santos, exarou um Acórdão decretando que o Presidente em funções ainda podia concorrer a dois mandados, como previa a Constituição, pois não havia cumprido mandato algum, na medida em que as eleições de 1992 não haviam sido conclusivas.

Entre Novembro de 2006 a Setembro de 2007, a Comissão Interministerial para o Processo Eleitoral (CIPE), liderada pelo ministro Virgílio Fontes Pereira fez o registo de 8.290.648 eleitores. Quanto ao registo no exterior, Fontes Pereira alegava falta de condições "Se é verdade que algumas condições materiais podem ser reunidas, e houve um esforço muito grande da parte da CIPE, mandatada pelo governo para tal, o certo é que grande parte dessas condições materiais não podem, neste momento, ser garantidas para que o registo eleitoral se realize no exterior do país".

Fontes Pereira, numa conferencia com a comunicação social, justificava que das discussões havidas com vários actores concluiu-se ser difícil que a Comissão Nacional Eleitoral (CNE) e os partidos políticos concorrentes às eleições pudessem promover a supervisão e a fiscalização do processo em todos os países onde se encontram fixados os angolanos da diáspora.

No final de 2007, o então Presidente, marcou finalmente as eleições legislativas para Setembro de 2008, deixando de organizar e marcar as eleições presidenciais que já estavam agendadas para o ano de 2009 segundo recomendação do Conselho da República.

Em Fevereiro de 2008, o Tribunal Supremo reagiu a uma queixa da UNITA que exigia para os angolanos residentes no estrangeiro o direito de serem registados como eleitores. O Tribunal deu razão à UNITA quanto à decisão de governo de rejeitar a realização do registo eleitoral no exterior. Apesar de ter dado razão a UNITA, o Supremo acrescentava que já era demasiado tarde para a decisão mas recomendava que “uma vez que por lei os angolanos a residir no estrangeiro estão excluídos de votar nas eleições presidenciais, eles poderão apenas votar nas próximas eleições legislativas, a ter lugar o mais cedo, em 2012”.

As segundas eleições legislativas tiveram lugar em 2008 mas sem a inclusão dos angolanos na diáspora. Entretanto, no mês de Novembro deste mesmo ano, o ministro Virgílio Fontes Pereira viajou para assistir às eleições americanas, tendo anunciado em Washington, que os angolanos na diáspora poderiam votar nas eleições legislativas de 2012 e presidenciais de 2013.

Por ocasião da cerimonia de cumprimentos de fim de ano, o ministro Fontes Pereira voltou a prometer que os cidadãos angolanos residentes no estrangeiro poderiam votar em eleições futuras, porquanto o Governo procurará, em 2009, remover os obstáculos que inviabilizam a promoção deste direito cívico e patriótico. “No próximo ano vamos iniciar uma tarefa muito reclamada pelos angolanos cá e lá fora, que tem a ver com a preparação do registo eleitoral no exterior”, afirmou em jeito de balanço.

O registo eleitoral no exterior conforme programado não chegou a acontecer porque a agenda de 2009, ficou marcada com a criação de uma comissão constitucional para a revisão da lei magna. Em Janeiro de 2010, o MPLA pós termo ao assunto aprovando uma nova constituição em que retirou o artigo 79 que defendia a criação do circulo eleitoral da diáspora. Substituiu-o por um outro artigo que apenas permite o voto para os cidadãos que se encontram fora do país “por razões de serviço, estudo, doença ou similares”.

Depois de 11 anos, e já com um novo Presidente, João Manuel Gonçalves Lourenço, este anunciou a revisão pontual da constituição que inclui a consagração do direito de voto aos cidadãos angolanos residentes no exterior.

Na primeira semana deste mês de Junho, a UNITA, propôs uma revisão constitucional com a restituição do círculo eleitoral na diáspora representado por cinco deputados, sendo 2 para África, igual número para Europa e 01 do resto do mundo. O MPLA rejeitou a proposta. O ministro de Estado junto a Presidência, Adão de Almeida disse neste mesmo dia ao parlamento que o seu partido não precisa de circulo para diáspora. "Não é esse o espírito da proposta, mas sim que os 130 deputados eleitos pelo círculo nacional, que conta também com os votos da diáspora, representem todos angolanos. Não precisamos ter, necessariamente, um círculo eleitoral na diáspora para que os cidadãos que residem fora do país sejam representados pelos deputados".

O círculo eleitoral da diáspora, tal como os círculos eleitorais provinciais são círculos locais, unidades de apuramento autónomas. Face ao exposto colocam-se as seguintes questões: Se uns não precisam ter porque é que os outros precisam? Porque é que o governo angolano nunca criou as “condições técnicas” e “ logísticas” para a votação e o apuramento no exterior? Porque não respeita os direitos fundamentais dos angolanos residentes no exterior? Porque não trata os angolanos todos como iguais, com direitos iguais? Porque é que alguns podem ter o direito de fazer o apuramento local da sua eleição e outros não?

As vantagens dos cidadãos elegerem os seus representantes através de um círculo eleitoral próprio, local, são muitas. Primeiro, conhecem os candidatos, interagem com eles e podem servir de veículos institucionais para resolução de problemas específicos. Segundo, controlam melhor os seus votos, porque os seus votos, e só os seus votos, elegerão aqueles cinco deputados do seu círculo eleitoral. Terceiro, os seus votos já por eles controlados, contariam também para eleger os deputados do círculo nacional. Quarto, os eleitores na diáspora terão a seu lado permanentemente um porta-voz que lhes prestará contas do exercício do mandato. Quinto o circulo eleitoral na diáspora fortalece a representatividade democrática e a unidade nacional. Sexto, o círculo eleitoral da diáspora contribui também para a transparência e para a verdade eleitoral na medida em que obriga a se fazer primeiro o apuramento da vontade dos eleitores lá na diáspora antes das actas serem enviadas para Luanda.

Haver ou não um círculo eleitoral local para a diáspora tem grande impacto no controlo do apuramento dos votos. A questão central está no apuramento dos votos e não na votação em si. É mais um mecanismo de controlo e mitigação das eventuais intenções de má-fé.

Acima de tudo, o círculo eleitoral da diáspora fortalece a cidadania e ajuda a consolidar o Estado de direito democrático. Com o circulo eleitoral na diáspora, elegem-se deputados com quem se partilha a mesma sensibilidade comunitária como acontece com os demais circulos locais, os provinciais.

Com a recusa da consagração do circulo eleitoral na diáspora, pelo MPLA, os votos da diáspora serão colocados apenas na “confusão” do circulo nacional e ninguém fica a saber qual foi o seu sentido de voto nem o qual foi o peso da diáspora na eleição global, porque não haverá apuramento separado dos votos da diáspora ao contrário do que acontece em todos os outros locais de residência dos eleitores. De facto, nas eleições de 2017, um grupo de sete comissários eleitorais denunciou que não houve apuramento nos círculos eleitorais provinciais e que os resultados que estavam a ser anunciados não provinham das estruturas da CNE nos círculos eleitorais provinciais. Ora, não havendo um círculo eleitoral próprio, os votos da diáspora poderão ser objeto de idêntica manipulação e fraude.

Com o circulo eleitoral da diáspora, o MPLA não tem garantias que pode eleger para si os deputados neste circulo eleitoral. O MPLA procura evitar a contradição entre os resultados astronómicos do circulo nacional e os transparentes que poderão provir da diáspora. Como diz a socióloga Luzia Moniz, o MPLA tem medo de coisas que não controla. Portanto, a motivação subjacente à recusa do circulo eleitoral para diáspora é essencialmente política e partidária com contornos subversivos. Não é nada “técnica” e muito menos “financeira”, como alega a bancada parlamentar do MPLA. Virgílio Fontes Pereira continua no MPLA e pode-lhe ser solicitada a solução das “condições técnicas” que havia prometido em Dezembro de 2008, portanto,13 anos atrás.

Por isso apoiamos incondicionalmente a iniciativa “Angola Vota na Diáspora” que solicita a sua excelência presidente João Lourenço a reposição do circulo eleitoral da diáspora, alertando que “Ninguém aqui na diáspora está interessado em votar por votar”.


* Jornalista angolano