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Nigéria, prenúncio de vaga de violência em África?
Luanda viveu no passado sábado um dia de violência, que culminou na detenção de uma centena de manifestantes e também jornalistas, segundo a Polícia. No pior ano para as economias do continente em várias décadas, protestos contra as condições de vida dos jovens e abusos das autoridades ameaçam despontar em vários países. Se situação actual na Nigéria servir de prenúncio, esperam-se mais protestos - e mais repressão policial violenta - nos próximos meses.
Desde 8 de Outubro que a Nigéria tem vivido sob intensos protestos contra a violência policial, durante os quais terão sido mortas dezenas de pessoas pelas autoridades. Os protestos começaram depois de se ter tornado viral nas redes sociais um vídeo de um alegado assassínio de um jovem por parte de agentes do Esquadrão Especial Anti-Roubo (Special Anti-Robbery Squad, ou SARS), entretanto desmantelado.
O SARS era um ramo da Nigeria Police Force vocacionado para operações especiais contra crimes relacionados com armas de fogo. Ao longo dos anos, foi acusado de execuções extra-judiciais de civis, detenções ilegais, assaltos, extorsão e tiroteios. As autoridades negaram a autenticidade do vídeo, mas o suposto autor terá sido detido. A contestação ao SARS não é inédita e foi sempre incentivada pelo movimento #ENDSARS, que desde 2017 reclamou o seu fim.
De acordo com relatos na imprensa, os manifestantes têm sido sobretudo jovens, mobilizados nas redes sociais através do #ENDSARS, e têm congregado simpatia, quer no país, quer no estrageiro. Em casa, vários profissionais, incluindo médicos, advogados e comerciantes de alimentos, têm mostrado disponibilidade para apoiar os manifestantes. No estrangeiro, personalidades do espectáculo, como Beyonce, Kanye West, John Boyega, Diddy e Rihanna, ou do desporto, como Odion Ighalo, já vieram em defesa dos contestatários, e até Hillary Clinton apelou ao Presidente Muhammadu Buhari e ao Exército para pararem com as mortes.
As Nações Unidas (ONU) e a União Europeia (UE) também já condenaram a violência policial e exigiram a responsabilização dos envolvidos nas mortes ocorridas em Lagos. António Guterres, secretário-geral da ONU, falou em 20 mortos e apelou aos manifestantes para que evitassem actos violentos. Em Londres, Berlim, Nova Iorque e Toronto ocorreram manifestações de solidariedade com a causa do #ENDSARS.
Embora a causa próxima dos protestos seja a violência policial, a sua dimensão é mais ampla, conforme se infere da sua continuidade, mesmo depois das autoridades terem acedido a algumas das cinco exigências dos manifestantes: libertação imediata dos detidos durante os protestos, compensações aos familiares das vítimas mortais da brutalidade policial, uma investigação e acusação independentes a todos os relatos de má conduta policial, avaliação psicológica e nova formação aos agentes do SARS antes da sua colocação noutra unidade e uma remuneração adequada aos agentes da polícia nigeriana.
A esta contestação não serão alheios os protestos contra a violência policial que eclodiram nos Estados Unidos na sequência da morte de George Floyd ou na África do Sul depois de abusos policiais cometidos durante o confinamento por causa da pandemia de Covid-19, sugere o Institute for Security Studies (ISS).
Embora numa fase inicial os militares tenham chamado desordeiros aos manifestantes e assumido o compromisso de defender o país e a democracia a todo o custo, o Inspector-Geral da Polícia, Mohammed Adamu, acabou por dissolver o SARS e dois dias depois ordenou aos agentes da unidade que se apresentassem no quartel-general, em Abuja, capital do país, para serem sujeitos a uma avaliação médica e psicológica.
O Presidente Buhari, numa emissão televisiva, admitiu que o fim do SARS era o primeiro passo de uma reforma geral da polícia e de outras agências de segurança e que todos os agentes responsáveis por má conduta seriam levados à justiça. Além disso, num encontro de Mohammed Adamu com representantes da sociedade civil e activistas do mundo do entretenimento resultou uma declaração na qual se evocam os direitos constitucionais dos nigerianos à reunião e ao protesto, a santidade da vida e o papel da polícia na defesa dos direitos dos cidadãos e se admite que as cinco exigências dos manifestantes são preocupações genuínas e devem ser consideradas pelo Governo.
Na mesma declaração é bem acolhida a dissolução do SARS. Todavia, para preencher o vazio deixado pelo esquadrão, a Inspecção-Geral da Polícia criou uma nova unidade, a Special Weapons and Tactics (SWAT), cujos membros também ficam sujeitos a uma avaliação médica e psicológica destinada a aferir a sua aptidão para as funções. O que levou alguns analistas a considerarem a extinção do SARS uma mera operação de cosmética.
Prova de alguma ambiguidade das autoridades ou da sua incapacidade em gerir a situação foram as informações sobre manifestantes mortos pelas forças de segurança durante os distúrbios já após a dissolução do SARS. A BBC referiu que manifestantes tinham sido mortalmente atingidos ou feridos num contexto de brutalidade policial, em Lagos, a maior cidade da Nigéria.
O Governador estadual referiu 25 feridos e apenas um morto. Posteriormente, a Amnistia Internacional (AI) confirmou que o Exército e a polícia tinham morto, pelo menos, 12 manifestantes pacíficos em duas zonas de Lagos - Leikki e Alausa - onde milhares de pessoas protestavam contra a brutalidade policial. Mais tarde, a BBC referiu que, segundo relatos da AI de 19 de Outubro, pelo menos 15 pessoas, incluindo dois polícias, tinham morrido desde o início dos confrontos de Lagos. Dados mais recentes da AI falam em 56 mortos em todo o país, incluindo manifestantes e desordeiros infiltrados pela polícia para sabotar os protestos pacíficos. Ainda segundo a BBC, depois disto foi imposto um recolher obrigatório por tempo indeterminado em Lagos. Mas durante esse período, testemunhas terão observado militares a abrir fogo contra manifestantes que desafiaram a medida.
A condenação internacional dos excessos policiais e a cedência das autoridades nigerianas a algumas reclamações sugerem que as queixas são justificadas. O seu teor, ainda que dirigido ao comportamento das autoridades de segurança, não exclui o sistema como um todo.
Ao exigirem melhor remuneração para as forças de segurança, o #ENDSARS e os seus aliados reconhecem a dificuldade da situação dos agentes num país populoso, com uma elevada taxa de desemprego sobretudo entre a população jovem, uma crise económica agravada pela pandemia e envolvido numa luta interna contra o movimento fundamentalista islâmico Boko Haram, cujo primeiro líder, Mohammed Yusuf, terá morrido sob custódia policial, segundo um analista da ISS.
O cenário anti-subversivo terá mesmo potenciado os abusos policiais e a impunidade entre agentes mal pagos e sujeitos a situações de risco. Por isso, há quem considere que esta é uma oportunidade de reformular por inteiro todo o sistema de segurança da Nigéria, através de uma intervenção ao mais alto nível. Além de pacificar os críticos, tal intervenção poderia ser benéfica para os próprios agentes, melhorando as suas condições de trabalho e recuperando o seu prestígio entre a população. (JA)
Nota: O autor não segue as regras do actual acordo ortográfico