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RD Congo: Joseph Kabila Ganha com Prisão de Aliado de Presidente
Condenado por desvio de fundos, Vital Kamerhe é uma das principais figuras políticas da RD Congo e putativo candidato presidencial em 2023
A recente condenação de Vital Kamerhe, Chefe de Gabinete do Presidente da República Democrática do Congo (RDC), Felix Tshisekedi, a 20 anos de trabalhos forçados por desvio de fundos públicos pode ter debilitado a posição do Chefe de Estado, eleito há ano e meio. E reforçado a posição do antigo presidente, Joseph Kabila.
Antigo apoiante do ex-Presidente Joseph Kabila, que governou o país desde 2001 e ajudou a chegar à Presidência em 2006, e ex-Presidente da Assembleia Nacional (de 2006 a 2009), Kamerhe tinha um acordo com Tshisekedi para concorrer à Presidência em 2023. Além disso, o seu partido, o União para a Nação Congolesa (UNC), e o União para a Democracia e o Progresso Social (UDPS), de Tshisekedi, formavam uma coligação, a Mudança de Rumo (CACH, na sigla francesa), ela própria parte de uma aliança governamental com a Frente Comum pelo Congo (FCC), de Kabila.
Esta sentença compromete não só o futuro político de Kamerhe, de 61 anos, igualmente proibido de exercer cargos públicos por 10 anos depois de cumprir a sentença, mas também o acordo e a coligação que mantinha com Tshisekedi e a imagem do Chefe de Estado.Independentemente das suas alegações de inocência, de que a sentença é um ataque ao Presidente, de que nada era feito sem o conhecimento deste e do recurso que os seus advogados vão interpôr.
O beneficiário poderá ser Kabila, cujo partido detém larga maioria na Assembleia Nacional, no Senado e Assembleias provinciais, e vários ministros no Governo. Se em alguma coisa a sentença favorece Tshisekedi é no facto de ocorrer num contexto de combate à corrupção que floresceu durante os mandatos de Kabila, condenando por desvio de fundos a mais alta personalidade do país alguma vez julgada por semelhante crime.
"Nunca na história política do Congo, nas últimas duas décadas, um actor tão importante na cena política foi posto atrás das grades", referiu o Grupo de Estudos do Congo (CSG) da Universidade de Nova Iorque, citado pela Deutsche Welle (DW). Há, no entanto, quem entenda que tudo não passou de uma manobra para afastar Kamerhe das presidenciais de 2023, eventualmente orquestrada por apoiantes do próprio Presidente, cujo gabinete recusou comentar o caso, segundo a Reuters.
Na base da condenação esteve uma acusação de desvio de cerca de 50 milhões de dólares (46 milhões de euros) originalmente destinados à construção de milhares de casas pré-fabricadas, quer de cariz social, quer para forças de segurança e militares.
Foi ainda acusado de corrupção por ter aceitado duas propriedades de um empresário libanês, Jammal Samih, a quem terá sido adjudicada a construção das casas pré-fabricadas, e de desvio de fundos destinados a medicamentos, no valor de 10 milhões de dólares (9,2 milhões de euros), com a cumplicidade de um colaborador do gabinete de Tshisekedi, Jeannot Muhima.
Khamerhe terá alegado desconhecer Samih Jammal e conhecer Jeannot Muhima de nome. O primeiro terá sido condenado a 20 anos de trabalhos forçados por branqueamento de capitais e desvio de fundos e o último a dois anos de trabalhos forçados por desvio de fundos. Ambos alegaram a sua inocência.
Kamerhe defendeu também que não estava presente no momento da assinatura dos contratos em causa, em Abril de 2018, e que os terá herdado do anterior ministro do Desenvolvimento Rural.
Os advogados de Kamerhe irão recorrer da sentença, argumentando que os trabalhos forçados são proibidos pela Constituição da RDC. A condenação arrasta ainda a nora de Kamerhe, acusada de ter recebido um terreno de Samih Jammal, e a sua mulher, cujos bens terão sido arrestados, tal como os de outros membros da sua família, referiu a AFP.
Detido desde 8 de Abril na prisão de Makala, em Kinshasa, e com fiança desde logo rejeitada pelo Tribunal, Kamerhe pode ter sido vítima de uma manobra politicamente motivada, como alega, num caso ensombrado pela morte do primeiro juiz do julgamento, Raphael Yanyi, em Maio, dois dias depois de ter presidido à segunda sessão de audiências do caso.
Inicialmente considerada resultante de causas naturais (um enfarte), esta morte foi posteriormente considerada um homicídio pelo qual Kamerhe chegou a ser responsabilizado, segundo alguns relatórios. Segundo o ministro da Justiça da RDC, citado pela BBC, este juiz sofreu “uma morte violenta devido a golpes com objecto bicudo ou semelhante a faca, que foi cravado na sua cabeça”. A atribuição da morte a Kamerhe levou os seus advogados a temer pela vida do cliente na prisão.
A mesma prisão na qual, aliás, se realizou o julgamento, transmitido em directo pela televisão através do canal congolês RNTC, expondo os acusados à opinião pública em trajes prisionais. O que levou o advogado francês de Kamerhe, o francês Pierre-Olivier Sur, a classificar o julgamento como “julgamento show”. Que é uma tentativa de acentuar o combate à corrupção por parte do poder instituído, mostrando em simultâneo à opinião pública que nem os poderosos estão a salvo das autoridades.
Numa reacção à sentença, em comunicado, o UNC já veio dizer que o Tribunal foi incapaz de estabelecer a culpabilidade de Kamerhe e que vários indícios relacionados com a sua detenção e rejeição de libertação provisória levam a crer que a decisão já estava determinada.
O partido de Kamerhe apelou ainda à calma dos seus militantes, convidou os seus parceiros políticos a não se aproveitarem da situação, criticou prisões arbitrárias e uso da força excessiva sobre os seus militantes, reafirmou a sua filiação no CACH e pediu ao Presidente da República que velasse pelo bom funcionamento das instituições, “incluindo a justiça”.
Mas este apelo ao bom funcionamento da justiça surge num contexto em que o partido de Kabila propôs uma reforma do sistema judicial que tem sido mal recebida pelo FCC de Tshisekedi, pelos juízes e por alguma população, tendo já gerado uma vaga de violência no país, prontamente condenada pelo Presidente da República.
Resta esperar pelo rumo do recurso da sentença sobre Kamerhe e pela capacidade de Tshisekedi de manter a autoridade, sua e do Estado, num cenário em que Kabila parece mobilizar energias para uma eventual alteração da situação política.