Acesso Livre
Pompeo e as sombras chinesas em África
Durante quase uma semana em África, o Secretário de Estado norte-americano apelou à deserção das economias africanas face a Pequim.
Quase dois anos depois da última deslocação de um membro da Administração Trump a África - o ex-Secretário de Estado Rex Tillerson, entretanto substituído - o seu sucessor no cargo, Mike Pompeo, visitou três países africanos: Senegal, Angola e Etiópia. Escolhidos pelo seu grau de transição rumo à democracia e pela sua estabilidade, segundo Mike Pompeo, ou por terem “lideranças dinâmicas”, de acordo com fonte do Departamento de Estado citada pelo jornal Le Monde, a verdade é que em todos a China foi o "elefante na sala" em todos os encontros entre os norte-americanos e os seus interlocutores.
Pressionados pela presença crescente da China no continente e por recentes contactos de alto nível ali feitos por potências económicas como a Alemanha, a França ou a Coreia do Sul, os Estados Unidos (EUA) foram forçados a marcar posição em África, na sequência da negligência que têm tido para com as questões africanas. A segurança no Sahel, onde subsistem fenómenos de terrorismo, mas de onde os EUA ponderam retirar tropas, terá sido o pano de fundo visível dos encontros no Senegal, a primeira paragem, sem prejuízo da assinatura de vários Memorandos de Entendimento entre empresas e agências norte-americanas (American GE, Weldy Lamont) e o Estado senegalês, sobretudo no sector energético. Mas o Senegal foi, em 2018, o primeiro país da África Ocidental a juntar-se ao projecto chinês «Uma Faixa, Uma Rota», que visa ligar comercialmente o Extremo Oriente à Europa e África por mar e terra.
Em Angola, a segunda escala, a cooperação comercial esteve no topo da agenda, ou não fosse o país a terceira economia e o segundo maior produtor petrolífero da África sub-saariana. E onde gigantes norte-americanos, como a ExxonMobil e a Chevron têm interesses. Mas onde a China é credora da maior fatia da dívida angolana, cerca de 25 mil milhões de dólares, segundo números oficiais. Por isso, Pompeo aproveitou para anunciar uma linha de crédito de 2 mil milhões de dólares para investimentos em Angola por empresas de petróleo e gás dos EUA. E não se esqueceu de elogiar a luta anti-corrupção do Presidente João Lourenço, manifestando o apoio de Washington ao repatriamento de capitais angolanos ilicitamente deslocados para fora do país.
Por fim, na Etiópia, o segundo país mais populoso do continente, com cerca de 100 milhões de habitantes, sede da União Africana e porta de entrada para o Corno de África, Pompeo observou o sucesso reformista do Primeiro-Ministro Abiy Ahmed, no poder desde 2018 e Prémio Nobel da Paz em 2019, que promoveu a privatização de activos públicos, muito ao gosto dos EUA. Um país que acolhe avultados investimentos da Coca-Cola e onde a FedEx e a Citybank exploram novas oportunidades de negócios, a par de investimentos chineses, mas que não desdenha laços militares com Pequim, que mantém tropas no vizinho Djibouti.
Ataque e contra-ataque
Em todas as etapas do périplo, Pompeo deixou críticas à China. Mais ou menos veladamente, acusou Pequim de prejudicar os países africanos em prol dos seus próprios interesses. Numa alusão que deixou poucas dúvidas, referiu que “os países devem ter cuidado com os regimes autoritários e as suas promessas vazias”, acrescentando que esses regimes “fomentam a corrupção e a dependência”, criando instabilidade e sem contratarem população local. Acusou também a China de satisfazer as necessidades de outros Estados, mas gerando-lhes uma dívida de tal forma insustentável que os deixa totalmente dependentes dos seus credores. Ao invés, os EUA “defendem empregos locais, responsabilidade ambiental, práticas comerciais honestas, trabalho de alta qualidade e prosperidade mútua”, referiu Pompeo. Lançou igualmente farpas ao modelo económico chinês, criticando o planeamento centralizado, chamando a atenção para as experiências “fracassadas dos últimos anos no Zimbabwe, Tanzânia e na Etiópia” e recordando que actualmente a África do Sul prepara “uma alteração para permitir a expropriação de propriedades privadas sem compensação”, o que seria “desastroso para a economia e para o povo da África do Sul”. Defendeu ainda que “os sistemas socialistas não favoreceram economicamente as pessoas mais pobres do continente”, pedindo “um forte Estado de direito, respeito pelos direitos de propriedade, uma regulamentação que incentive o investimento” e exemplificando com os tigres asiáticos, que se ergueram em poucas décadas graças a economias abertas e liberalizadas.
A ofensiva de Pompeo não ficou sem resposta. Num texto publicado no Jornal de Angola, o embaixador de Pequim em Luanda referiu que “ao contrário daqueles professores de democracia que queriam apenas dar aulas de ABC e impor as suas doutrinas, falando palavras vazias, mas de braços cruzados do outro lado do oceano, a China tem sido sempre um fazedor que trabalha juntamente com os angolanos”. “Ao contrário daqueles hesitantes que se queixam das más condições e dificuldade de recuperar o investimento, a China avança com os parceiros angolanos sem medo das dificuldades”, acrescenta o diplomata. E referindo-se a todo o continente, considera que “a China sempre valoriza, respeita e apoia a África, nunca busca o interesse geopolítico em África e jamais impõe a sua própria vontade aos outros”, acusando outros de tentarem “obstruir e difamar maliciosamente a cooperação China-África com a tal teoria chamada armadilha das dívidas”, que serão “são meramente palavras falsas e completamente rejeitadas pelo povo africano”.
A partir de Angola, um micro-cosmos da presença chinesa em África, o embaixador lembrou o apoio de Pequim ao continente em várias vertentes – infra-estruturação, investimento, formação, medidas assistenciais. Uma realidade que Pompeo, apesar de procurar retomar a iniciativa «Prosper Africa», lançada no final de 2018 pelo ex-Conselheiro Nacional de Segurança, John Bolton, dificilmente terá conseguido desmentir. Afinal, na última década, a China substituiu os EUA, no plano nacional, como principal parceiro comercial de África, um mercado de 1,2 mil milhões de consumidores. Por isso, em Dakar, Luanda ou Adis Abeba, terá sido fácil imaginar um espectáculo de sombras chinesas em cada uma das reuniões com Pompeo. Não aconteceu, mas podia ter acontecido.
JA
O autor não escreve com as regras do novo acordo ortográfico