Africa Monitor

Acesso Livre

Moçambique e Cabo Verde nas rotas do contrabando e tráfico

Moçambique e Cabo Verde nas rotas do contrabando e tráfico

A Interpol identifica o uso de portos e aeroportos pelos grupos de crime organizado nas suas operações ilegais com África


Moçambique e Cabo Verde são expressamente mencionados no relatório da Interpol «Tráfico de bens ilícitos em instalações portuárias e aeroportuárias de África», divulgado em Junho no âmbito do programa ENACT, implementado pelo Institute for Security Studies (ISS) e Interpol, com apoio da Global Initiative against Transnational Organized Crime (GITOC).

Relativamente aos aeroportos, de acordo com o documento, os grupos de crime organizado (GCO) estão a preferir os de Moçambique aos da Tanzânia para traficar produtos de vida selvagem, como chifres de rinocerontes, partes de leões e javalis, abalone ou escamas de pangolim. “Isto reflecte uma técnica de uso de diferentes aeroportos e pontos de entrega de bagagem para diminuir as hipóteses de detecção”, refere o documento. Ali se diz também que são os GCO asiáticos os que mais usam os aeroportos e portos africanos, e que a maioria dos suspeitos envolvidos no tráfico destes produtos destinados ao mercado asiático “nos últimos três anos são da Ásia, especialmente do Vietname, China e Coreia do Sul”. Apesar da referência a Moçambique, contudo, há sinais de que os GCO estarão a transferir operações de contrabando de produtos de vida selvagem dos aeroportos da África Oriental para os da África Ocidental, porventura devido ao aumento da cooperação entre a China e os Estados do leste africano no combate a este flagelo.

O aeroporto Nelson Mandela, em Cabo Verde, também é mencionado, a propósito do tráfico de cocaína, como exemplo de aeroportos da África Ocidental usados para comércio ilegal. Segundo o relatório da Interpol, algumas apreensões estão relacionadas com voos provenientes do Brasil e em 2018 a cannabis foi o estupefaciente mais apreendido naquele aeroporto.

Em geral, os GCO tiram partido das medidas de segurança dos aeroportos africanos, nos quais as triagens feitas nas partidas e em trânsito destinam-se a propósitos de segurança, mais do que para identificar bens ilícitos. E nas chegadas, embora a triagem sirva para interceptar contrabando, é feita por agentes mais empenhados em obter receitas e em identificar pragas agrícolas do que em encontrar bens ilícitos. Por outro lado, os criminosos beneficiam das lacunas de segurança, como carência de modernas tecnologias, orçamentos reduzidos e treinos limitados para agentes alfandegários, refere o relatório. Nalguns casos, nem sequer é feita a segmentação de passageiros por falta de pessoal ou de competências. Em vez disso fazem-se controlos aleatórios, pouco eficazes na detecção de contrabandistas. E ocorrem situações em que bagagem e mercadorias seguem directamente dos aviões para as portas VIP sem passar pela alfândega ou qualquer inspecção. Recorrendo mais a companhias aéreas africanas, na convicção de que têm mais brechas de segurança, os GCO usam diversos métodos nos aeroportos para o tráfico ilícito de bens, como a corrupção, os correios de droga (ou «mulas»), a ocultação de produtos noutras mercadorias, o aproveitamento dos picos de passageiros (geradora de vigilância mais dispersa), guias de carga falsificadas e a utilização de zonas de comércio livre (legalmente mais permeáveis), entre outros.

Relativamente aos portos, Moçambique também é citado. Alguns portos do país tendem a ser altamente “explorados e controlados pelos GCO para o tráfico de droga”, dado que Moçambique oferece oportunidades aos traficantes, como a falta de meios para conter o fenómeno, refere o relatório. Os portos de Angoche e Nacala são referências já anteriormente conhecidas na rota da heroína proveniente do Afeganistão. O relatório da Interpol vem agora recordar o porto moçambicano de Pemba, de onde foram embarcadas em 2016 várias toneladas de marfim escondidas em plástico rumo à China continental, mas passando antes por portos no Quénia, Singapura, Coreia do Sul e Hong-Kong, onde guias de transporte forjadas ajudaram a perpetrar o crime.

Na costa ocidental africana, os portos de Cabo Verde também desempenham um papel no contrabando. Segundo o relatório, é lá que são recolhidos pequenos pacotes de cocaína antes de seguirem para a Europa. Essa mercadoria provém da América Latina, onde é embarcada em navios de carga e posteriormente transferida para lanchas rápidas ou pequenos veleiros, onde os volumes maiores são convertidos em pacotes menores e transportados para Cabo Verde. O documento menciona o eventual papel da mafia russa neste tipo de tráfico, demonstrado com base em apreensões de cocaína em Cabo Verde. Uma tese ilustrada com uma apreensão de 9,5 toneladas de cocaína num navio de pavilhão panamiano em 2019 cujos tripulantes eram todos russos. O navio rumava a Tânger, em Marrocos, mas fez uma paragem de emergência em Cabo Verde na sequência da morte de um tripulante, onde a droga foi descoberta oculta em 260 embalagens.

De acordo com o relatório, algumas linhas de costa, ilhas remotas com discretos pontos de desembarque informal, fronteiras porosas, quadros legais frágeis e parcos recursos das autoridades marítimas, portuárias e alfandegárias em África facilitam o contrabando no continente, muitas vezes a coberto da actividade piscatória ou do comércio lícito dos dhows (pequenos veleiros de dois mastros muito vulgares na Península Arábica) que chegam da Ásia. Os portos africanos também são aproveitados pelos GCO devido ao grande volume comercial, designadamente marítimo, entre África e a China, “de onde vem a maioria dos bens contrafeitos”. Corrupção, ocultação de produtos ilícitos em contentores juntamente com produtos legítimos, uso de «mulas» (no caso de estupefacientes), documentos falsos, serviços postais ou adulteração dos selos dos contentores estão entre os processos mais usados nestas operações. As embarcações utilizadas são os dhows, lanchas rápidas (sem sistemas automáticos de identificação para escapar à vigilância electrónica), ferries, navios de cruzeiro, navios de carga, veleiros e barcos de pesca. Suspeita-se que durante as operações de contrabando os barcos de pesca desliguem os seus sistemas de GPS para não serem detectados. Os produtos mais mencionados pelo relatório neste contrabando marítimo com África são os estupefacientes, as armas, os produtos de vida selvagem e os motores roubados de veículos.

A Interpol sugere que a maioria dos GCO que operam nos portos e aeroportos africanos mantém a intenção e a capacidade para continuar a explorar estas instalações para seu ganho. (JA)
 

Nota: O autor não escreve de acordo com as regras do novo acordo ortográfico