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Heroína, rubis e ouro financiam terrorismo islâmico em Cabo Delgado
Mudanças de estratégia das milícias armadas e das Forças de Defesa e Segurança podem configurar novos cenários militares e económicos em Cabo Delgado.
Quase três anos depois do ataque a Mocimboa da Praia, na província de Cabo Delgado, que marcou o início da ofensiva armada de milícias de inspiração islâmica, as Forças de Defesa e Segurança (FDS) passaram à ofensiva. Mas, segundo uma investigação da Global Initiative (GI), intitulada «Risco da África Oriental e Austral», a capacidade de acção das milícias aumentou nos últimos anos, tal como a capacidade de financiamento, dado que passaram a controlar rotas de tráfico de heroína, rubis e ouro.
Depois de, em Abril, o Conselho Nacional de Defesa e Segurança, um órgão de consulta do Presidente da República de Moçambique, assumir a existência de uma “agressão externa por terroristas”, as FDS - que integram as Forças Armadas de Moçambique (FADM), os Serviços de Informação e Segurança do Estado e a polícia - lançaram uma ofensiva contra as milícias - localmente conhecidas como Ahlu Sunna Wal Jammaa (ASWJ), ou Al-Shabaab - com apoio de empresas de segurança privada. Maputo não deixa de considerar que a situação na província está sob controlo.
Esta aparente inversão no rumo dos acontecimentos em Cabo Delgado surge na sequência do que tem sido considerada outra mudança, mas do lado do Al-Shabaab, conforme refere a GI, que lembra que o conflito começou por ser de baixa intensidade, com ataques pouco frequentes, geograficamente concentrados e limitados à aterrorização de populações. Mas acrescenta que essa estratégia pode estar a mudar. Estarão melhor armados e organizados, tendo formado uma espécie de aliança com a Província da África Central do Estado Islâmico, um ramo centro-africano do Daesh, e atacam mais vezes, destruindo infra-estruturas. Simultaneamente, em vez de aterrorizar populações, procuram cativá-las e com isso legitimar a sua presença, à semelhança do que o Al-Shabaab fazia há dez anos noutros locais. E há indícios de que estarão a assumir um papel cada vez maior no tráfico de heroína, rubis e ouro, procurando controlar as respectivas rotas.
Informações que o Africa Monitor Intelligence (AM) já tinha antecipado no final de Abril, ao admitir “o reforço gradual dos jihadistas, sobretudo através de material roubado a militares e civis, e ganhos de motivação crescentes fruto da mediatização do conflito”. Tal aumento do poder de fogo correspondeu “a uma mudança de estratégia visando a ocupação efectiva do território”, referiu então o AM.
A investigação da GI atribui a mobilização das milícias junto da população à negligência com que Maputo tem tratado Cabo Delgado e a uma alegada corrupção nas instâncias militares e políticas do Governo. Mantida à margem do crescimento económico que Moçambique conheceu nos últimos 20 anos, com elevadas taxas de desemprego e pobreza (segundo um relatório de Abril do Instituto de Estudos para a Paz e Segurança da Universidade de Adis Abeba), tal como outras províncias do norte do país, Cabo Delgado é terreno fértil para uma retórica hostil ao Governo central e recrutar militantes. Que o Al-Shabaab tem aproveitado para incutir os valores do Islão radical na população.
A revelação em 2016 de empréstimos secretos de 2 biliões de dólares garantidos pelo Governo (parte dos quais foram agora declarados nulos pelo Tribunal Constitucional moçambicano) e que favoreceram altos quadros da FRELIMO, já tinha prejudicado a imagem do partido do poder, num tempo em que o actual Presidente era Ministro da Defesa. Alegações que ainda hoje mancham a reputação das FDS. Tal como outras alegações mencionadas pela GI, segundo as quais um antigo ministro e oficiais na reserva com ligações ao Presidente Nyusi estão pessoalmente envolvidos no transporte e na logística de bens e militares entre Maputo e Cabo Delgado e a quem interessaria mais a continuação do conflito do que a sua resolução. Ou de que desertores das FDS estarão a ser pagos para treinar jovens recrutas dos insurgentes.
A acção dos insurgentes tem igualmente tido impacto no plano económico. Por um lado, prejudica a confiança de investidores no projecto de exploração de gás no norte do país, fragilizando a posição do Governo. Por outro, procuram beneficiar do comércio ilícito de recursos na província, como a heroína, que tem novas redes em Pemba e com as quais têm estabelecido contactos, dos rubis de Montepuez, onde podem ter substituído e/ou recrutado traficantes afastados pelas autoridades, ou do ouro, que podem estar a explorar em aldeias mineiras e que é ilegalmente transaccionado para fora do país. O alegado aliciamento de elementos da FDS parece provar um aumento de receitas dos insurgentes, segundo a GI.
A estes relatos respondeu Maputo com uma ofensiva em 28 de Abril, conforme o AM também já referiu, naquela que terá sido “a primeira operação planificada em larga escala contra jihadistas em Cabo Delgado”, com reforço de homens e meios aéreos. Mas, depois de recorrer ao auxílio mercenário de um grupo armado privado russo, a Wagner, que terá sofrido pesadas baixas e retirado, o Governo recorreu a outro grupo armado privado, o sul-africano Dyck Advisory Group, chefiado por Lionel Dyck, através de um contrato com a polícia moçambicana. O que, segundo a GI, terá gerado tensão diplomática entre Maputo e Pretória porque a presença do grupo em Moçambique violará legislação sul-africana. Por outro lado, a escalada ocorre num momento em que as autoridades têm que responder à pandemia de Covid 19 e a outro conflito armado, neste caso interno, que mantêm com a Junta Militar, uma facção dissidente da RENAMO.
A isto acrescem referências a uma tentativa de controlo da informação pelo Governo, que já terá envolvido a detenção de jornalistas pela polícia. A GI refere que “a supressão do fluxo de informação a partir de Cabo Delgado é uma tentativa de limitar a exposição dos falhanços e abusos do Estado”. Além de gerar teorias da conspiração desfavoráveis a Maputo, a gestão informativa oficial tem sido errática, segundo a GI.
Conforme o AM já referiu, uma missão presidencial concluiu que altas patentes militares enviaram ao Governo informações incorrectas sobre o conflito, o que pode ter contribuído para o mau desempenho das FDS. Entretanto, o AM já referiu a detenção de um importante líder muçulmano de Palma e de jovens na posse de armas em Montepuez. (JA)
Nota: O autor não escreve segundo as regras do novo acordo ortográfico