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Restrições de direitos e perseguições políticas em África sob cobertura do combate ao Coronavirus

Restrições de direitos e perseguições políticas em África sob cobertura do combate ao Coronavirus

Michelle Bachelet, Alta Comissária da ONU para os Direitos Humanos, reconheceu a existência de abusos policiais, militares e políticos, em nome da luta contra o Covid 19

 

De vários países em África chegam relatos de abuso de força ou de poder, não só para forçar ao cumprimento dos Estados de Emergência, mas também para diminuir direitos de opositores políticos ou minorias étnicas ou religiosas. Com o pretexto da segurança sanitária, alguns Estados aproveitam para restringir direitos desproporcionadamente, o que se torna mais grave em contextos pré-eleitorais, diminuindo a liberdade de expressão ou circulação, particularmente relevantes para o esclarecimento da opinião pública.

A Guiné-Conacri é um dos países que se enquadra neste cenário. Em 26 de Março, quatro dias depois de um referendo constitucional controverso e marcado pela violência que pode legitimar o prolongamento no poder do Presidente Alpha Condé para além do actualmente permitido, foi decretado o estado de emergência devido a um surto de Covid 19. De acordo com a Human Rights Watch (HRW), nas últimas semanas, as autoridades “assediaram, intimidaram e detiveram arbitrariamente membros e apoiantes da oposição”, gerando uma “atmosfera de insegurança” em plena pandemia. Segundo a organização, citada pela AFP, “as forças de segurança abusam das pessoas e aplicam as medidas de emergência de uma forma que mina a confiança pública”. O que leva a oposição e a sociedade civil a temerem que o Governo explore a pandemia para reprimir dissidentes e violar direitos.

Já um relatório do Conselho para a Paz e Segurança da União Africana (PSC Report) de 22 de Abril refere a declaração do estado de emergência na Etiópia seis meses antes do termo do mandato do Governo e o adiamento indefinido das eleições gerais no país, previstas para Agosto deste ano. A par de opiniões favoráveis às medidas, existem outras que contestam o adiamento eleitoral, argumentando que foi decidido sem consultar a oposição e que provocará uma crise constitucional. O relatório refere a preocupação de alguns analistas face aos poderes conferidos ao Governo pelo estado de emergência, num país em que determinadas regiões são administradas por comandos militares. E que têm gerado acusações de que o Governo está a aproveitar-se da pandemia para ampliar o seu poder e estender ilegalmente o seu mandato.

Estes, porém, não são os únicos casos de relação perversa entre a pandemia e Governos em África. A plataforma noticiosa African Arguments referiu o caso do Togo, onde no próprio dia em que foi decretado o estado de emergência por causa do Covid 19, 2 de Abril, foram mobilizados 5 mil soldados, alguns dos quais atacaram civis de imediato. Uma situação que vem reforçar os poderes do Presidente Gnassingbé, já de si despóticos, segundo a plataforma.

O mesmo meio noticioso referiu também o caso do Egipto, onde o Presidente el-Sisi, depois de ter minimizado a pandemia para proteger o turismo, acusou um correspondente do The Guardian de questionar números oficiais sobre o vírus e expulsou-o, ameaçando fazer o mesmo ao New York Times. A AFP lembrou que el-Sisi aproveitou a pandemia para estender o estado de emergência, existente desde 2017, por três meses, conferindo amplos poderes de prisão e detenção à polícia e restringindo direitos como a liberdade de imprensa e de reunião. O Mail & Guardian, por seu lado, destacou a brutalidade de polícias e militares na Nigéria e no Quénia, onde terão espancado quem não cumpria de imediato os protocolos de distanciamento social impostos por causa da pandemia.

A African Arguments lembrou também o Zimbabwe, onde foi recentemente criminalizada a circulação de falsa informação, através da aprovação de uma lei que, segundo um activista dos direitos humanos, usa o Covid 19 para silenciar a imprensa mesmo após o período da pandemia. Criticar o Presidente do país, Mnangagwa, sobre o modo como enfrentou a pandemia, valeu a um opositor uma acusação de insulto.

E na Argélia foi aprovada a criminalização de notícias falsas numa sessão parlamentar com poucos deputados, ausentes devido à pandemia, segundo a AFP. A oposição e activistas de direitos humanos, que estão contra a lei, criticaram sobretudo o modo como ela foi aprovada.

Em Abril, em plena pandemia de Covid 19, a Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, a ex-Presidente do Chile, Michelle Bachelet, admitiu a existência de relatos de uso de força excessiva, algumas vezes letal, por parte de forças de segurança, para obrigar pessoas a cumprirem as regras de confinamento e recolhimento obrigatório.

Bachelet esclareceu que as restrições aos direitos devem ser necessárias, proporcionadas, não discriminatórias e de duração limitada. “Os poderes de emergência não devem servir de arma dos Governos para aniquilar dissidentes, controlar a população e até perpetuar a sua permanência no poder”, referiu a responsável, acrescentando que “minar direitos como a liberdade de expressão podem causar danos incalculáveis ao esforço de contenção do Covid 19 e aos seus perniciosos efeitos socio-económicos colaterais”.

Na mesma linha vai o argelino Smail Chergui, Comissário da União Africana para a Paz e Segurança, ao revelar que “alguns actores políticos e cidadãos estão preocupados com o facto de muitos Governos poderem obter vantagens com a pandemia e entrincheirarem-se para além dos seus limites constitucionais”.

Se nalguns casos a pandemia já provocou abusos evidentes em África, noutros resta esperar a sua evolução para compreender o impacto das restrições impostas pelos Governos. As situações, bem como os relatos e as preocupações, multiplicam-se. Tal como os argumentos usados, que ultrapassam o Covid 19 e se estendem às eleições e, nos casos limite de Estados afectados por conflitos internos ou externos, à defesa da sua integridade territorial. (JA)