Africa Monitor

Análise

Xavier de Figueiredo*: O outro lado do narcotráfico

A África é geralmente apresentada como “placa giratória” do tráfico de droga da América Latina para a Europa. Ou de droga produzida no próprio continente. É o que asseveram relatórios de respeitáveis entidades internacionais. Deles fazem parte minúcias como a de que a Guiné-Bissau e Cabo Verde integram essa “placa giratória” e Portugal é uma das principais portas de entrada de cocaína na Europa.

Quando se trata de identificar causas e elementos propiciadores deste lúgubre papel reservado a África, as visões mais elementares do fenómeno são categóricas. Os estados africanos são débeis, as suas leis aleatórias e as instituições decorativas; os responsáveis políticos, as polícias, os tropas, determinam-se por ganâncias que não resistem à tentação dos gordos ganhos que os “dealers”, astutos e poderosos, estão sempre dispostos a garantir em troca de préstimos que façam prosperar os seus obscuros negócios. E há, claro, o factor adicional da geografia, que fez da Europa e da África partes vizinhas do mundo.

O que não se diz – mesmo tratando-se de uma evidência igualmente elementar – é que se o tráfico de droga da América Latina para a Europa está sempre a aumentar, sendo secundário se escala a África ou outra qualquer parte do mundo, é sobretudo por que o consumo de estupefacientes nas sociedades europeias está a crescer. Como as estatísticas demonstram e a gente vê por aí, à vista desarmada. Há dias ficou a saber-se que o consumo de droga é uma das principais causas de morte em determinada camada da juventude, em Portugal.

Uma das realidades sociais da Europa dos nossos dias é uma atitude de relativa complacência em relação ao consumo de droga, suas implicações e reflexos – em especial no plano humano. Em certos aspectos chega mesmo a parecer uma atitude permissiva, justificada, como convém, por piedosas mas abstractas teorias pós-modernas.

As “salas de chuto” destinadas a permitir aos toxicodependentes que se injectem em esmeradas condições de higiene; os debates, manifestações públicas e pronunciamentos a favor da liberalização das drogas leves (as pesadas virão a seguir); os artigos e publicações que exaltam as propriedades profilácticas e terapêuticas da liamba – como entender isto? Ou as acusações de puritanismo e reaccionarismo feitas a quem não concorda com um mundo destes?

Também dá que pensar que a relativa complacência em relação à droga e aos drogados, coexista com uma implacável perseguição aos fumadores de tabaco, estes objecto de uma campanha que os apresenta (ou denuncia?) como causa de muitos e daninhos males. Os agentes da campanha, que chega a empregar métodos muito parecidos com os de totalitárias sociedades regulamentadas e controladas, são os mesmos governos, instituições do Estado e capelinhas subsídio-dependentes tão tolerantes em relação à droga. Como não haviam os narcotraficantes de aproveitar?

* Jornalista, editor da newsletter Africa Monitor Intelligence