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Insurgência em Cabo Delgado alterou "rota da heroína" em Moçambique

Insurgência em Cabo Delgado alterou "rota da heroína" em Moçambique

O porto de Angoche, em Moçambique, tem ganho proeminência na rota do Índico, que faz chegar a África a droga do Afeganistão.


Desde 2018 que o sul e sudeste africanos cresceram de importância no tráfico da heroína proveniente do Afeganistão, segundo um relatório do programa anti-criminalidade ENACT. O papel de Moçambique tem-se agravado a partir de 2017, quando o fundamentalismo islâmico no país assumiu a luta armada desde a província de Cabo Delgado, a norte. Angoche e Nacala, na província de Nampula, são agora os pontos de referência nesta rota, cujos responsáveis têm alegadamente feito donativos para campanhas eleitorais da FRELIMO.

Urbanização rápida e disfuncional, migração de jovens pouco qualificados, desemprego e incapacidade das autoridades locais para satisfazerem as necessidades das populações são factores que contribuem, quer para a disseminação da droga, quer para a criação de algumas fortunas e o alastramento da corrupção entre a polícia e os políticos, refere o recente relatório do ENACT.

Segundo o programa ENACT, implementado pelo Institute for Security Studies (ISS) e a Interpol com apoio da Global Initiative against Transnational Organised Crime (GI TOC) os pontos de referência moçambicanos nesta rota são Angoche e Nacala, na província de Nampula, que faz fronteira a norte com Cabo Delgado.

Situado 180 Km a sul da cidade de Nampula (cerca de 6 horas de automóvel devido ao mau estado das estradas), Angoche é um porto antigo, alternativo ao de Nacala, a norte e mais próximo do conflito armado alimentado pelos extremistas islâmicos. “Angoche parece ter ganho destaque desde que a insurgência eclodiu na província de Cabo Delgado”, refere o documento.

E ganha com o mau estado da rede viária, que o torna um ponto remoto e pouco sujeito a patrulhamento regular. O que não impede os traficantes de usarem veículos novos em cujos pneus escondem a droga, conduzidos por motoristas contratados à saída da cidade para a transportarem “para Maputo e daí para a África do Sul”.

O risco dos insurgentes, porém, não exclui Nacala do circuito. Afinal, é o terceiro maior porto do país em volume de carga movimentada e o maior porto natural de águas profundas da costa leste africana, lembra o ENACT, acrescentando que a sua utilidade se deve às ligações que tem “ao nível de mercados e jurisdições internacionais”.

Usado também para contrabando de outros produtos, como marfim e pedras preciosas, Nacala é uma porta de entrada para economias interiores, como Malawi, Zimbabwe ou Zâmbia, refere o relatório. E já identificado pela GI TOC, em 2018, como um feudo pessoal de empresários ligados a comércio ilegal que concederam favores políticos e pessoais à elite da FRELIMO a troco de acesso privilegiado ao porto, facilidades aduaneiras e protecção ao transporte rodoviário de bens obtidos ilicitamente. Empresários que trocaram também doações políticas por apoio ao seu transporte marítimo de heroína a partir de portos moçambicanos com destino a mercados mais lucrativos ou ao consumo na África do Sul.

Segundo o ENACT, com base em fontes ligadas ao contrabando no porto de Nacala, as redes ali estabelecidas contribuem com cerca de 4 milhões de dólares anuais para as campanhas eleitorais da FRELIMO Uma prática que remontará a 1994, mas que nos últimos anos terá sofrido reveses. O ENACT menciona denúncias feitas em 2014 por uma organização não governamental que expuseram o favorecimento a interesses privados e embaraçaram o Governo. Que também não terá ficado alheio à percepção internacional de que o porto integrava uma rota de tráfico de droga.

O relatório acentua, no entanto, as alterações na gestão do porto feitas em 2018, com a concessão à Corredor de Desenvolvimento do Norte (CDN). Detida em 49% pelos Caminhos de Ferro de Moçambique (CFM, empresa pública) e em 51% pela Sociedade de Desenvolvimento de Corredor de Nacala (SDCN, por sua vez detida em 42,5% pela brasileira Vale, em 42,5% pela japonesa Mitsui e em 15% por outros investidores, incluindo o ex-Presidente Armando Gebuza), é considerada pelo ENACT um instrumento para desmantelar a rede de interesses de Gebuza no porto.

Mas nem estas modificações terão diminuído o papel da costa sudeste africana e de Moçambique na rota da heroína que vem do Afeganistão. Para fazer face ao flagelo, o ENACT faz recomendações aos Governos: perceber o papel dos mercados ilícitos no desenvolvimento urbano, expôr a corrupção inerente ao tráfico de droga, integrar os migrantes (muitas vezes recrutados para as redes de tráfico), agir sobre os promotores da violência associada ao tráfico, promover transportes públicos acessíveis e apoiar as entidades que lutam contra o consumo e o tráfico de droga.

Em Setembro de 2019, o Gabinete das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC) classificou Moçambique como um corredor para grandes volumes de substâncias ilícitas, sobretudo heroína, defendendo mais cooperação internacional para a prevenção do tráfico.

Produzida no Afeganistão, a heroína é transportada até ao Paquistão, onde é embarcada rumo à costa leste africana e aí distribuída por estrada em rotas que incluem a Tanzânia, o Quénia e Moçambique, visando o apetecível mercado da África do Sul.

O circuito pelo Índico recorre a navios de carga, primeiro, e a pequenas embarcações, como os dhows (veleiros de dimensões reduzidas e dois mastros, muito comuns na Península Arábica) e as lanchas, depois, que desembarcam heroína, haxixe e cannabis em pequenos portos, enseadas e outros locais mal fiscalizados da costa africana. Dessa forma, a economia da heroína tem contribuído para moldar o crescimento de pequenas localidades costeiras, cidades fronteiriças e mesmo de grandes centros urbanos na costa sudeste africana.

JA

Nota: O autor não segue as regras do novo acordo ortográfico